DOI: http://dx.doi.org/10.19137/circe-2019-230104

 

ARTÍCULOS

 

Da ἀγέλη de Esparta ao γυμνάσιον de Atenas. A educação do παῖς sob os cuidados da πόλις

De la ἀγέλη de Esparta al γυμνάσιον de Atenas. La educación del παῖς bajo los cuidados de la πόλις

From the ἀγέλη of Sparta to the γυμνάσιον of Athens. The education of the παῖς under the care of the πόλις

 

Miguel Spinelli*
[Universidade Federal de Santa Maria, Rio Grande do Sul, Brasil]
[migspinelli@yahoo.com.br]

 

Resumo: A principal questão em análise neste estudo é a educação concebida por Licurgo como uma tarefa do Estado. Praticada em Creta, na qual Licurgo fora educado, trazida para Esparta, dali se espraiou por toda a civilidade grega. A proposta de Licurgo, sob diferentes práticas e interpretações, inspirou não só as legislaturas como também a discussão filosófica subsequente. A República de Platão, aqui concebida como um projeto de legislatura (politeía) e de educação filosófica, é analisada em termos de uma síntese amadurecida da tarefa educadora do Estado.

Palavras chave: Agéle; Ginásio; Educação; Paîs; Pólis

Resumen: La principal cuestión de análisis en este estudio es la educación concebida por Licurgo como una tarea del Estado. Practicada en Creta, en la que Licurgo había sido educado, fue llevada a Esparta, desde donde se extendió a toda la civilización griega. La propuesta de Licurgo, bajo diferentes prácticas e interpretaciones, inspiró no solo las legislaturas, sino también la discusión filosófica subsiguiente. La República de Platón, aquí concebida como un proyecto de legislatura (politeía) y de educación filosófica, es evaluada en términos de una síntesis madura de la tarea educadora del Estado.

Palabras clave: Agéle; Gimnasio; Educación; Paîs; Pólis

Abstract: The main question of analysis in this study is the education conceived by Licurgo as a task of the State. Practiced in Crete, in which Lycurgus had been educated, it was taken to Sparta, from where it spread to all Greek civilization. The proposal of Lycurgus, under different practices and interpretations, inspired not only the legislatures, but also the subsequent philosophical discussion. The Republic of Plato, here conceived as a project of legislature (politeía) and of philosophical education, is evaluated in terms of a mature synthesis of the educational task of the State.

Keywords: Agéle; Gymnasium; Education; Paîs; Pólis

 

Este artigo contém quatro blocos de observações que se complementam entre si e que se concluem uma pela outra resultando em um conjunto aberto a novas e outras possibilidades de investigação e de estudo. O artigo, no seu todo, se constitui em um só bloco de considerações introdutórias a respeito de como a ἀγέλη lacedemônia veio a promover o γυμνάσιον de Atenas, e como ambos fomentaram a educação do παιδός como uma obrigação do Estado. Trata-se, com efeito, de uma breve análise histórica construída dentro de um ponto de vista filosófico estimulado a partir prioritariamente dos escritos de Platão e da importância dada à ginástica como exercício dedicado aos cuidados do corpo e da mente. O fundamental da análise não consiste na defesa de uma determinada tese, e sim em apenas percorrer, de um ponto de vista histórico e reflexivo, o seguinte roteiro: de como a escolaridade veio a ser concebida entre os gregos como uma tarefa que implica a responsabilidade do Estado mesclada à dedicação dos pais ou da família.
1.- Foi a partir de Creta, do que lá se denominava de ἀγέλη (agrupamento, rebanho, multidão) que Licurgo concebeu o que a posteridade grega denominou de ginásio. Platão, na República (V. 452 c8-9), fez o seguinte registro: “os primeiros a adotar a prática dos exercícios nus (τῶν γυμνασίων) foram os cretenses, depois os lacedemônios”. Tucídides (460-400 a.C.), contemporâneo, mas um pouco mais idoso que Platão (428-348 a.C.) registrou na obra Guerra do Peloponeso (I. 6. 5) que foram os lacedemônios “os primeiros a se desnudar (ἐγυμνώθησάν), e, além de se mostrar nu em público, a se untar, olear o corpo, para o exercício da ginástica (γυμνάζεσθαι = exercitar-se nu)”1.
Em Creta, a ἀγέλη tinha essencialmente por função preparar o jovem tendo em vista o conhecimento teórico e o exercício prático das funções militares, mas também das disciplinas relativas às letras que facultavam o bom desempenho da civilidade. Por isso o jovem vinha ali a ser recluso a partir dos 17 até a “diplomação” na cidadania aos 21 anos. Levada para Esparta, a ἀγέλη foi concebida como lugar de reclusão das crianças a partir dos sete anos: da idade definida por Licurgo como “da razão”. O conceito do qual se valeu foi este: recluir para educar, com o que pressupunha retirar a criança de uma interferência excessiva dos usos e costumes, bem como dos hábitos e valores exclusivamente familiares.
A educação da primeira infância, até os sete anos, ficava restrita ao recinto familiar. Era nele que se começava a sorver princípios e valores frutificados e repassados de geração em geração: do pai para o filho e para o neto, e assim sucessivamente sob um contínuo processo de geminação e de reciclagem. Tratava-se de uma luta sem fim que pedia para, sempre de novo, de geração em geração, renascer e recomeçar. O inusitado entre os espartanos, dado que não havia um instituto de casamento em termos estritamente vinculantes de um homem com uma mulher (afinal, os homens viviam mais na caserna que em casa), a criação dos filhos era inicial e preferencialmente feita no ambiente familiar da mãe (sobre a qual não recaía dúvida quanto à maternidade) e dos avós disponíveis (mais a avó que o avô, visto que, muitos deles pereceram nas guerras). Daí que, na primeira infância, a criança sorvia os usos e costumes espartanos dentro primordialmente da família materna, e não paterna, mas sob vigilância dos referidos avós, aos quais a civilidade espartana concedia consideração e respeito.
Na ἀγέλη, o παιδός, submetido a rigorosa disciplina, ficava recluso sob a tutela do Estado com a finalidade de fazer duas coisas como se fossem apenas uma: brincar (παίζω) e estudar (συσχολάζειν). A ideia era esta: toda a educação do παιδός sob o título de uma παιδεία, de uma exercitação educadora, haveria igualmente de ser uma παιδιά, isto é, uma brincadeira, um jogo, um divertimento. Essa, efetivamente, foi uma ideia que se expandiu por toda a Grécia, e que, explicitamente, na medida em que foi concebida sob os termos de uma παιδός / -ἐραστία (παιδεραστία = de um amor cuidadoso dedicado à infância e à adolescência2) passou bem ao longe do que hoje (tema a ser estudado em outra ocasião) viemos a compreender por pederastia: por uma exploração sensual e sexual criminosa da infância e da adolescência.
Quanto à designação grega de ginásio, esse foi um nome derivado do substantivo neutro γυμνάσιον que evocava entre os gregos pelo menos três designações:

 

a) o exercitar-se nu nas atividades físicas;
b) o estar ou andar desarmado;
c) o recinto onde se praticava nu e desarmado os exercícios.

Tratava-se, nos dois primeiros casos, de duas condições que se constituíam em obrigação regimental: a primeira para a prática dos exercícios; a segunda para os que se dispunham a entrar e frequentar o recinto do ginásio. Eram, pois, duas condições que se expressavam em um só termo, no adjetivo γυμνός: literalmente, não coberto e desprovido, no sentido de não portador, de armas ou, simplesmente, não vestido de amaduras3. Daí que o verbo γυμνάζω designava tanto a ação de desnudar-se quanto a de exercitar-se.
A obrigação de se colocar nu nos ginásios foi imposta em razão das lutas corporais por lá muito utilizadas como forma de exercício. As lutas eram feitas de corpo nu (liso), e, além disso, untado de óleo (azeitado): condição que nos leva imediatamente a pensar no quanto era escorregadio, e que, por sua vez, exigia muita força e habilidade aplicadas aos braços e às pernas. A luta era fundamentalmente travada valendo-se das palmas das mãos (παλάμη), de cuja modalidade derivou o outro nome também aplicado aos ginásios: o de παλαίστρα (palestra)4.
A luta era travada (digamos, aproximadamente) assim: os lutadores, no confronto um do outro, espalmavam mão à mão, as entrelaçavam com os dedos, e assim, manipulandose (πα- λαμάομαι), ou seja, amparandose reciprocamente com o trabalho das mãos, se aplicavam golpes com a força dos braços e das pernas. [O substantivo feminino πάλη designava a luta atlética e o combate; παλάμη, a palma da mão, o golpe de mão, o trabalho manual]. Daí, por um lado, que as lutas eram sempre realizadas em dupla, fato que levava os jovens, como Platão fez constar no Sofista (218 b) a ter o seu companheiro ou parceiro habitual da ginástica (συγγυμναστήν); por outro, foi, então, da referida modalidade comum de luta que adveio, a par do nome γυμνάσιον, o de παλαίστρα, termo com o qual igualmente substantivaram o chamado ginásio.
No geral, as edificações eram construções ao redor cobertas, que comportavam no centro um grande retângulo descoberto, justamente a παλαίστρα: uma quadra, do tipo como denominamos hoje de campo de futebol, cercada, entretanto, por edificações e não propriamente por arquibancadas. Era, então, na παλαίστρα que os “ginastas” se exercitavam nas mais diversas modalidades de luta: na arte do pugilato, na da esgrima, nas corridas e nas caminhadas atléticas etc. Não só se exercitavam, como também realizavam ali competições e certames públicos relativos a todos os tipos de modalidades ou exercícios de ginástica. Cabe, aliás, aqui apenas mencionar a παλαίστρα como sendo o campo no qual Aristóteles (no Liceu) encontrava ocasião e espaço [não esqueçamos que lá era tudo muito disciplinado e fiscalizado quanto ao uso dos recintos] para suas caminhadas com os discípulos, a fim de, com eles, promover suas confabulações filosóficas.
Os grandes ginásios eram construídos e mantidos pelo Estado. As edificações, em geral, eram extensas e amplas. Muitas delas ocupavam os grandes espaços destinados aos parques e jardins, nos quais, inclusive, se localizavam os templos destinados à louvação dos deuses, aos sacrifícios e às libações. Era em razão da chuva que as edificações eram dotadas, em geral, de suntuosos alpendres cobertos, amparados por grandes colunatas.
Os recintos fechados das edificações (das ginasiais) comportavam muitas outras atividades e funções além da ginástica:

 

a) Oferecer, no cotidiano, a escolaridade básica concernente às disciplinas da ἐγκύκλιος παιδεία5. Tratava-se de uma escolaridade requerida enquanto ensino fundamental necessário e indispensável para o exercício da vida cívica: aprender a ler, a escrever e a contar (em favor da οἶκος familiar), e, além disso, introduzir-sena gramática e na poética, e, enfim, sorver os princípios elementares do saber e da cultura;
b) Exercitar, como já visto, a ginástica preparatória tendo em vista os jogos olímpicos, as festividades6 e a guerra. Aqui, entretanto, o que mais importa destacar diz respeito ao fato de que a função dos Ginásios ou Palestras consistia em fundamentalmente preparar os atletas e não o soldado. Ocorre que a grande parte dos soldados era composta de mercenários, vindos particularmente da pobreza, e era preparada em campos de exercícios de guerra específicos. Os jovens da pobreza buscavam na “profissão” de soldado e de guerreiro um modo de “ganhar a vida”, sendo que, muitos, querendo ganhar, findavam perdendo. O preparo ou a “educação” para a guerra priorizava a habilidade, o vigor e a destreza na defesa corporal e no manuseio das armas, de modo que, em última instância, era uma capacitação que estimulava bem mais a brutalidade que a humanidade;
c) Outra função ampla dos ginásios consistia em oportunizar o revigoramento e a manutenção do bem-estar físico e mental dos jovens e de todos os cidadãos: não só os da elite com tempo livre, mas também os assalariados no tempo livre7. Bem por isso que cabia aosliberginásios facultar um ambiente lúdico para o lazer em geral, e, além disso, para a discussão política e o debate de opiniões, razão pela qual eles vinham a se constituir em lugares privilegiados para o encontro dos sofistas, dos filósofos e dos amantes da literatura, da poesia e das artes em geral.

Daí a contínua efervescência humana naquele ambiente, sobretudo, ao amanhecer e ao entardecer. Durante o dia, no horário em que a πόλις estava absorta nos ofícios, os ginásios eram tomados pelos παιδός (crianças, adolescentes e jovens) na escolaridade e nas práticas relativas aos exercícios da ginástica oferecidos como obrigatórios: mesmo que árduos, eram, entretanto, oferecidos sob o estímulo do lazer. Os ginásios, enfim, vieram a se constituir em ambiente privilegiado do passatempo e do lazer juvenil. Os jovens findaram por viver bem mais tempo nos ginásios que na Ágora, e pela seguinte razão (ao modo como zombou Aristófanes, nas As nuvens 1002): lá no ginásio, os jovens podiam reluzir (λιπαρός = engordurado, brilhante), ou seja, exibir todo o seu brilho, e, enfim, “florescer na formosura (εὐανθής)”!
No que concerne à atividade da ginástica propriamente dita, ela não se restringia apenas aos exercícios práticos, pois comportava do mesmo modo (tal como registrou Platão, no Górgias 450 a) instruções teóricas: “A ginástica também oferecia o logos sobre a boa ea má constituição do corpo”. Eis os termos com os quais Platão, na República (VII. 521 e3-5) a definiu: “A ginástica se ocupa com o que nasce e perece, pois presta assistência (ἐπιστατεῖ) ao desenvolvimento e ao declínio do corpo”. Trata-se de uma definição que pressupõe a mentalidade, difusa entre os gregos, segundo a qual o corpo humano se constituía num microcosmos. Daí a razão pela qual o παιδοτρίβης (o responsável pela ginástica) não atuava sozinho, mas associado ao médico (ao ἰατῆρ) e ao gastrônomo (ao γαστρόφιλος) ou cozinheiro (ὀψοποιός)8. Toda essa vinculação se explica pela própria semântica do παιδοτρίβης, cujo termo, literalmente, designava o mestre que orienta o παιδός na ação de gastar, de consumir (τριβή) a energia acumulada.
Foram igualmente os gimnasiarcas e os pedótribas que, concretamente, promoveram entre os jovens o cuidado do corpo como forma de cumprir a contento, sem prejuízos, as obrigações cívicas. “Uma compleição atlética (como sentenciou Aristóteles) não é vantajosa para os objetivos gerais da vida cívica nem para a saúde nem para a procriação”9. Era função, pois, dos mestres da ginástica orientar (submeter a normas) os exercícios concernentes ao preparo das competições olímpicas, dos certames festivos e das guerras. A função primordial do παιδοτρίβης, aos quais se associavam os gimnasiarcas (os mestres propriamente ditos da ginástica) pode ser sintetizada neste pressuposto: em como promover transgressões, ou seja, o excesso de gastos de força ou vigor, a fim de promover (adquirir), sem perda, ainda mais força e vigor. Em outros termos: como transgredir normas mediante normas, como equilibrar gastos (perdas) sob uma medida justa de reposições (aquisições). Quer dizer: na mesma medida do gasto, se impunha a consequente necessidade de repor a energia consumida.
Daí o consórcio, que Platão, na República (IV. 441 e9), denominou de σύμφωνα (harmonia, sinfonia) entre o gimnasiarca, o ἰατρός e o γαστρόφιλος10, que levaram ao operaras três disciplinas juntas: a ginástica, a gastronomia e a medicina11. Platão, na República, concede aos pitagóricos esta vinculação, dada como um pressuposto ancestral da doutrina que concebia o conceito de saúde nos termos de um estado de equilíbrio (de “cadência e harmonia” ou de “harmonia e ritmo”12) entre o vigor físico e o mental. Na mesma República (III. 406 a7-8), Platão atribui a um tal de Heródico, um professor de ginástica que vivia sempre adoentado, ter, naprática, tirado grande proveito do referido consórcio, a ponto de, por ele, ter garantido para si uma vida saudável e longeva.
2.- Foi Licurgo, o precursor das legislaturas gregas, que fez a ginástica entrar na pauta da πολιτεία como uma atividade primordial da educação infantil. Ele foi, entre os legisladores, o primeiro dos gregos a conceber a saúde do corpo sob o conceito de corpo exercitado (bem cultivado) e bem alimentado como condição de se promover um corpo “belo e robusto”: fonte de prosperidade e de bem-estar quer para o cidadão em particular quer para o todo da πόλις13. Foi assim, sob esse conceito, que ele concebeu a ginástica como uma obrigação tanto para os meninos quanto para as meninas, não só em vista de um benefício próprio, mas também enquanto genitores, a fim de que, na idade apropriada, viessem a gerar (reproduzir) filhos fortes, vigorosos e saudáveis.
“Convicto de que a educação da infância era a melhor e a mais importante obra de um legislador, Licurgo então se ocupou, antes de tudo, em regrar as relações conjugais e os nascimentos (τοὺς γάμους καὶ τὰς γε- νέσεις)” (Plutarco, Licurgo XXI. 14. 1). O princípio sobre o qual se apoiou foi este: que o principal cuidado humano deve recair sobre o cultivo do corpo com especial cuidado para a alimentação e o exercício. Nesse ponto, Crítias, o primo segundo de Platão e um dos trinta tiranos que governou Atenas, registrou igualmente que Licurgo iniciou a Constituição espartana com o seguinte questionamento: o que é que possibilita ao humano “gerar o melhor corpo (βέλτιστος τὸ σῶμα) e o mais forte?”. Na sequência, respondeu que os genitores careciam de duas condições indispensáveis: que ambos, tendo em vista a procriação, fortificassem o próprio corpo, e que, para isso, equilibrassem o exercício da ginástica com uma alimentação substanciosa14.
Além de Crítias, eis, efetivamente, como Xenofonte descreveu o que consta no preâmbulo da Constituição espartana (I. 3-4) de Licurgo:

 

Comecemos sobre a procriação, que é uma questão primordial, e que muitos povos não se ocupam, e mesmo os que aparentam dar às jovens destinadas a procriar uma boa educação, são por vários povos tratadas sob um regime alimentar racionado e sem condimento. O vinho, por alguns deles, é interditado, por outros, admitido, mas bem diluído em água. Alguns helenos também acreditam ser conveniente para as jovens, a exemplo dos artesãos que vivam uma vida sedentária, inativa, apenas fiando a lã. Ora, como esperar de jovens submetidas a um tal regime a geração de uma valiosa linhagem? Foi então pensando assim, que Licurgo (...) determinou que o corpo feminino se exercitasse não menos que o masculino (...) e que entre elas fossem organizadas, a exemplo dos homens, competições de corridas e de lutas (...)

A partir de Licurgo, foram basicamente os sofistas, não sem o contributo dos filósofos, em particular dos pitagóricos, que espraiaram pelas πόλεις gregas o estímulo entre os jovens no sentido de fortificar o corpo em benefício de si mesmos e da coletividade. Eles disseminaram igualmente pela Grécia o pressuposto da legislatura de Licurgo e da doutrina pitagórica segundo o qual é da saúde do corpo que se retira o sustento da saúde da alma (da mente), sem o que, enfim, corpo e alma não se qualificam reciprocamente. Na senda dos sofistas, os gimnasiarcas e os pedótribas, muitos deles sofistas que fizeram da ginástica profissão, foram os que, concretamente, promoveram entre os jovens o cuidado do corpo como forma de cumprir a contento todas as obrigações cívicas que a ginástica presumia. Veio, nesse sentido, a ser função dos gimnasiarcas e dos pedótribas orientar (submeter a normas) os exercícios concernentes ao cotidiano requisitado quer pela escolaridade quer pelo preparo das competições olímpicas, dos certames festivos e das guerras.
Remonta a Pitágoras o ensinamento segundo o qual a alma (entenda- se a sede da inteligência, da vontade e das emoções) só se sobrepõe ao corpo na medida em que lhe for concedido o governo, ou seja, que nela, mediante instrução, se promova o uso da razão (da qual, como dito, a alma é a sede), por cujo uso venha a ser possível estimular a aptidão humana para o discernimento e para o exercício do juízo, e, com eles, a sensatez e a razoabilidade. Foram os pitagóricos que, com esse modo de pensar, deram um novo alento à sofística enquanto movimento de instrução e de educação (nos termos de um professorado perambulante) que se espalhou por todas as πόλεις e povoados (δῆμοι) de toda a Grécia. “Deram alento” em razão de que, como sentenciou Platão, no Protágoras (316 d), “a arte do sofista é muito antiga”.
Foram, pois, dois amplos movimentos educadores que, no interior do mundo grego, se alastraram por todas as πόλεις: um, como já dito, o movimento sofista que tomou direção e sustento no magistério filosófico de Pitágoras; outro, o que encontrou orientação e alento na legislatura de Licurgo, sob a qual veio a se erigir a πολιτεία de Sólon e a de Clístenes. Dentro da legislatura de Licurgo o que mais sobressaiu foi a importância que ele atribuiu à educação. A ressonância dessa prioridade foi tanta, a ponto de, no decurso histórico, como sentenciou Platão, no Protágoras (343 b), ter levado todos os sete sábios da Grécia a ser “amantes e discípulos (ἐρασταὶ καὶ μαθηταί) da educação lacedemônia”.
A ginástica tomou conta do cotidiano da vida grega, e os ginásios vieram a se constituir no lugar privilegiado de convivência humana e cívica. O que Platão, por exemplo, relatou no Protágoras (326 b-c), como palavras do sofista Protágoras, assinala bem a importância que a ginástica exerceu na educação do παιδός, e, consequentemente, da cidadania grega:

 

Os pais entregam seus filhos ao mestre de ginástica (παιδοτρίβου), a fim de que eles possam ter um corpo robusto à serviço de uma mente viril, e, uma vez requisitados, não venham a revelar fraqueza ou covardia na guerra e em situações semelhantes. Mais que os outros, são, com efeito, os filhos dos ricos que levam vantagem, uma vez que, desde cedo e antes dos demais, começam a frequentar tais mestres (διδασκάλων) e são os últimos a deixá-los. Assim que os deixam, a cidade como que os obriga a conhecer as leis e a tomá-las como regras de conduta (...)

Tais palavras de Protágoras são bastante claras, e realça a extraordinária importância dos ginásios no cotidiano juvenil da vida grega. São palavras que igualmente evidenciam o status quo do regime educacional estabelecido nas πόλεις gregas, com as quais, todavia (através de Sócrates confabulando com Protágoras), Platão não se mostra assim em pleno desacordo, apenas disposto a entender a realidade existente com um objetivo preciso: qualificar ainda mais o ambiente dos ginásios e o regime educacional nele restrito. A fala atribuída a Protágoras evidencia a preocupação de Platão (sempre consoante a seu método: germinar a realidade mediante princípios de idealidade) em trazer ao debate o status quo da realidade cotidiana à idealidade de suas proposições ou projetos. Com a filosofia –eis a questão– o objetivo da educação reclusa tendeu a dar um passo a mais: assim como Licurgo planejou retirar o παιδός dos valores restritos familiares, a filosofia pressupôs a necessidade de buscar valores universais, mais exatamente valores que só a educação de um pensar lúcido e sensato fosse capaz de produzir e de satisfatoriamente proferi-los.
A verbalização da realidade com a qual Platão mais se ocupou em seus escritos foi aquela difundida ou fomentada sobretudo pelos sofistas, que, por todas as πόλεις gregas, gozavam de um grande reconhecimento popular. Dentre os sofistas, Platão deu primordial importância (e ouvidos) a Protágoras, a Górgias e a Hippias: os três mestres mais louvados e requisitados no universo do ἔθος cívico e da cultura grega. Platão, aliás, dedicou um diálogo para cada um, e por pelo menos duas razões: de um lado, por força do reconhecimento quanto à importância deles no cenário da cultura e da educação grega; de outro, porque era cânone fundamental do platonismo a necessidade de compreender (entender, conhecer) uma determinada realidade a fim de reformá-la. Sob uma perspectiva geral, Platão vai ao debate com eles por este motivo: porque o diálogo exige a dicção da verdade, a tal ponto que os implicados na confabulação dialógica contam apenas com uma única possibilidade, qual seja, o de empenhar-se juntos na busca da verdade. A falsidade não é edificante e não faz nenhum sentido confabular em favor da “edificação” dela: porque a sensatez de modo algum permite que se edifique o que não edifica!
O compromisso com a verdade é condição sine qua non de qualquer diálogo. Sem esta condição, ou seja, sem o envolver-se, sob o signo da verdade, com os valores tradicionais no intuito de qualificá-los, nenhum projeto filosófico e educacional encontra a boa perspectiva quanto à possibilidade de alçar-se ao que os gregos (em particular Platão) denominavam de βέλτιστος, superlativo de ἀγαθός, do que é bom, belo e justo. Daí que era imperativo para Platão se inteirar do status quo da realidade grega, a fim de regenerá-la. A maior fonte que lhe veio em amparo foi a sofística, dentro da qual vicejavam os mestres mais salientes e reconhecidos (e muito bem pagos) da civilidade grega. Foi nisto, pois, que consistiu a pedagogia platônica: em envolver-se com os “valores tradicionais” a fim de melhorá-los.
Havia, entretanto, uma limitação: lá, naquela ocasião, assim como ainda hoje, a referida pedagogia findou (como ainda hoje finda) por alguns mal acolhida e/ou mal interpretada. Ocorre que a tentativa de qualificar valores ancestrais sempre veio a ser por muitos tomada como uma atitude no sentido de “estragá-los”. Ora, não há como –isto é fato– alguém entrar numa sala de aula, cursar várias disciplinas, diplomar-se numa área de estudo e continuar pensando do mesmo modo e sob os mesmos restritos valores de seus ancestrais, que, muitas vezes, sequer tiveram a oportunidade do acesso aos estudos. Isso é uma coisa, outra bem pior, está em acreditar que a qualificação mental dos que se dedicaram à vida de leitura, investigação e estudos resulta em “estragar” o modo de pensar dos ancestrais. Ora, sem algum estrago, não há, por suposto, prosperidade alguma!
Imerso na realidade grega, Platão concordava, sim, quanto à necessidade de priorizar a educação em vista da saúde do corpo, porém, defendia o ideal, sob o imperativo do filosófico, quanto à necessidade de uma qualificação teórica da inteligência ativa e do cultivo de uma mente (alma) tão saudável quanto o corpo. Ele retoma em termos as mesmas proposições ideadas pela ancestral legislatura de Licurgo, que, na posteridade, foi retomada por Sólon, e que, agora, ele próprio (Platão) se dispõe a reformá-la. Os ginásios e a ginástica não ficaram de fora de seu projeto; ao contrário, foram idealmente reformados como imprescindíveis para o ordenamento cívico que precisa “da excelência do corpo” (τῆς τοῦ σώματος ἀρετῆς) do cidadão e da alma em uma só virtude (Leis II. 673 a). Quanto ao ordenamento tradicional, praticado no cotidiano da πόλις, Platão, em seus escritos, se mostra ciente de que, sob alguns aspectos, os ginásios extrapolaram suas funções. Não, todavia, em termos morais, e sim na medida em que os jovens foram deixados a um “cuidado excessivo do corpo, muito além dos exercícios usuais da ginástica” (República III. 407 b5-6).
O curioso é que em Platão, em suas principais obras, não se observa qualquer referência negativa aos ginásios, antes, dentro do projeto da καλλίπολις (da cidade ideal por ele concebida) lhes concede um lugar de destaque. O tipo, por exemplo, de observação fei ta por Cícero (República IV. 4), que os ginásios eram o lugar da permissividade e dos “amores dissolutos e livres”15, não comparece em Platão, e, tampouco, coincide com a mentalidade grega. Não é comum à mentalidade filosófica dos gregos esse modo de expressão moralista genérica, aberta, facilmente moldável ao “gosto” deste ou daquele público auditor, ou, como diríamos hoje, “do freguês”. Cícero, desse modo de expressão, foi o grande mestre, na medida em que falava o que os moralistas patrícios, ouvindo-o, entenderiam o que gostariam de entender. Nesse ponto, Cícero (106-43 a.C.) manteve-se no mesmo tablado dos oradores e logógrafos gregos, tais como Isócrates e Demóstenes, e não no chão do filósofo grego. Cícero casou a eloquência retórica com a política, a ponto de vir a se elevar como o mais eloquente retórico tutelado pelos moralistas patrícios da elite romana. Depois dele veio Sêneca que foi sem dúvida um outro exemplar do discurso fluído, dissimulado, sempre bastante amplo a ponto de ser sempre semanticamente bem acolhido.
É certo que nem tudo na πόλις, em particular lá dentro do ginásio, lugar em que muitos jovens consumiam o seu ócio (σχολή = descanso, repouso, tempo livre16) na desocupação, se submetia ao controle dos gimnasiarcas e dos pedótribas. Até onde era possível, sob a vigilância do consuetudinário e dos fiscais da πόλις, havia severa vigilância no sentido de coibir os excessos, por exemplo, a vaidade mais que a satisfação, o corpo cansado mais que a busca por um corpo saudável. Foi nesse ponto, tal como Platão fez constar na República (III. 407 c), que a ginástica veio se contrapor à filosofia, que, no pensar de muitos cidadãos, tratava-se de um estudo muito severo, desproporcional, na medida em que o ofício de filosofar forçava o cérebro dos jovens desocupados a ponto de levá-los à fadiga e à vertigem. Algo semelhante, Platão fez constar nas Leis (I. 646 c; III. 684 c), dizendo que a ginástica findou criticada pelos pais ou κύριος, sobretudo, por promover nos jovens algo semelhante: a vaidade antes do prazer e do bem-estar, a fadiga (o cansaço, o exaurir de forças) antes da saúde, com sérias consequências tanto para os estudos quanto para as atividades do cotidiano familiar.
3.- Atenas e a maioria das πόλεις gregas seguiram em tudo, senão os anseios e os métodos, ao menos a noção e a idealização regimental cívica da educação espartana que, aliás, não era muito diferente da de Creta. Da legislação de Licurgo, as πόλεις gregas verteram a necessidade, feito uma obrigação do Estado, de recolher o παιδός, a partir dos sete anos, a fim de trabalhar com ele o vicejar da razão. Em recinto fechado, pelos espartanos denominado de ἀγέλας, aos meninos reclusos era dado partilhar do mesmo alimento e de uma educação comum17, com o seguinte objetivo: fortificar e controlar pela ginástica e pela escolaridade, tanto o corpo, em vista da guerra, quanto a mente (pela capacitação do uso da razão), em vista da civilidade.
Platão, em seu projeto filosófico e educador, no intuito de reedificar o ἔθος cívico da παιδεία grega, retoma Licurgo como fonte de inspiração e norte para o seu projeto. A legislatura por ele idealmente concebida sob os termos de uma καλλίπολις, de uma cidade bela, expressou, nas Leis (VII. 804 c-d) prescrições semelhantes às de Licurgo:

 

Construiremos edifícios para o funcionamento dos ginásios e das escolas coletivas (κοινῶν), no centro da cidade, em três lugares diferentes. Fora dos muros, construiremos também três campos de treinamentos para equitação, para o arco e a flecha e para outras modalidades (...). Para cada uma, teremos mestres de fora (ξένους διδά- σκειν), que, na condição de residentes, serão pagos para fornecer todos os conhecimentos relativos à guerra (πρὸςτὸν πόλεμόν) e à música (πρὸς μουσικήν). Não deixaremos ao encargo da vontade dos pais obrigar seus filhos a frequentar ou não os conhecimentos (...), afinal, eles são filhos da pólis mais que de seus genitores.

As prescrições são claras: seriam construídos edifícios específicos com dupla finalidade: para a exercitação da ginástica e para o aprendizado escolar. O ensino seria ministrado, nos termos como Platão fez constar na República (V. 452 a-b) como uma obrigação subsidiada pelo Estado independentemente da vontade ou critério dos pais, e, inclusive, para as mulheres. Ele abrangeria as duas amplas áreas priorizadas desde os ancestrais, pela cultura grega: a da γυμναστική e a da μουσική. No contexto da γυμναστική, Platão fala explicitamente dos ensinamentos (μαθήματα) relativos à guerra (πρὸς τὸν πόλεμόν). Não que ele fosse um defensor no sentido de resolver os problemas e as adversidades entre as πόλεις valendo-se do recurso bélico. Na Carta VII (333 d) certamente o mais extraordinário testamento político e filosófico de Platão, ele apela à todas as πόλεις que troquem “a guerra pela amizade”. O que nas Leis (sem entrar aqui na discussão a respeito da autenticidade platônica dessa obra), ele manifesta relativo ao πρὸς τὸν πόλεμόν (ao em favor da guerra) como o fim primordial da ginástica, tem tudo a ver com a sua admiração por Esparta que concebeu a ginástica como um exercício essencialmente preparatório para a defesa e garantia da autonomia das πόλεις.
A esse respeito, Platão registrou no Protágoras (342 e), como palavras do sofista Protágoras que a educação espartana, apenar de ter concebido o exercício da ginástica como uma preparação do jovem guerreiro, mesmo assim dava mais importância ao cultivo do “amor à sabedoria (φιλοσοφεῖν) que ao amor propriamente dito pela ginástica (φιλογυμναστεῖν)”. No Laques (183 a), Platão efetivamente registrou que, de todos os helenos, eram os lacedemônios os que mais se dedicavam ao preparo da guerra; nas Leis, referindo-se à Creta, diz que lá “a alimentação em comum (τὰ συσσιτία) e a ginástica (τὰ γυμνάσια) foram concebidas pelo legislador em vista da guerra”. Na República (III. 404 b), ele registra idêntica observação acompanhada da seguinte pergunta de Sócrates: “A mais valiosa ginástica não é irmã (βελτίστη γυμναστικὴ ἀδελφή) da μουσική, nos termos que acabamos de tratar?”. Glauco objeta: “O que com isso queres dizer?”. Sócrates responde: “Estou me referindo a uma ginástica simples, equitativa (ἐπιεικής = moderada, mansa, suave), daquela que certamente se destina à guerra (περὶ τὸν πόλεμον)”.
Nesse e em outros contextos da República (IV. 429 e – 430 a) Platão dá efetivamente a entender que a educação do guerreiro e do cidadão em geral não haveriam de ser particular ou substancialmente distintas. Foi, pois, pensando assim que ele, ao idear a καλλίπολις, tendeu a reabilitar, a exemplo de Licurgo, o exercício da ginástica sob uma função primordial: a da promoção do vigor (da ἀρετή) do guerreiro por sobre o necessário fomento do vigor do cidadão; mas com uma diferença: sob o conceito de uma ginástica moderada (ἐπιεικής). Ocorre que, do ponto de vista da καλλίπολις de Platão, o cuidado excessivo do corpo (aquele cuidado que vai muito além do exercício necessário) é tido como prejudicial sob todos os aspectos, a ponto de vir a ser uma fonte de prejuízos quanto ao bom desempenho das obrigações laborais e cívicas. Por isso que, igualmente na República (III. 407 b; 410 b), ele reconhece que a fadiga corporal, antes de fomentar enfraquece o vigor do corpo e promove consequências negativas em todos os setores: no desempenho da economia (οἶκος) familiar, das expedições militares e da vida política.
São, entretanto, duas coisas que Platão não contrapõe, apenas quer complementar: de um lado, a ginástica que priorizava o vigor do corpo como ideal de beleza e de orgulho juvenil; de outro, a preparação do atleta e do guerreiro. Não entra no projeto de Platão qualquer preocupação no sentido de dissolver esses ideais, mesmo o da preparação para a guerra. Sob as pretensões da καλλίπολις, o que Platão na República (II. 357 c-d) priorizou restabelecer foi a função essencialmente cívica da ginástica, e, desse modo, retirar dela a ilusão promovida sob a condição de uma profissão fundamentalmente lucrativa para os mestres perambulantes de ginástica que se acumulavam pelas πόλεις.
Daí a razão pela qual toda a educação relativa à γυμναστική, no projeto educador platônico, é concebida em termos de um bem cívico, e, desse modo, como uma função do Estado, com mestres estrangeiros residentes contratados e pagos para este fim. A esse respeito, a ideia de Platão é construída no sentido de fechar os espaços da profusão de sofistas παιδοτρίβης, que, “feito sereias”, se punham a encantar os jovens com suas “valiosas” ofertas de corpo belo e saudável: incialmente, de graça, depois, a bom preço, e, enfim, a preço de ouro. Ele quer, ademais, estender a todos o acesso aos Ginásios, e, neles, à ginástica e à escolaridade. Nesse ponto, ele defende, dentro do modo de pensar pitagórico, que o saber, feito sementes, deveria ser gratuitamente espalhado (semeado) por todos os cantos e a quem tivesse disposto em fazê-lo germinar.
Platão, efetivamente, em vários pontos retomou a legislatura de Licurgo, nos termos, por exemplo, como registrou Plutarco, na Vida de Licurgo (XXIV. 16. 4):

 

Licurgo não confiou os filhos dos espartanos aos cuidados de mercenários pedagogos (παιδαγωγοῖς) comprados a preço de ouro, tampouco permitiu ao pai criar e educar seu filho a bel-prazer. Assim que as crianças alcançavam a idade dos sete anos, ele determinava que se recolhessem a uma educação comum. Para isso, as distribuía em diferentes agélas (ἀγέλας), nas quais compartilhavam o mesmo alimento e a mesma educação e ali se ocupavam de brincar e estudar (συσχολάζειν).

Não era, portanto, prioritariamente a guerra o que estava em questão. Tanto que, como vimos, prevalece no ideário platônico a necessidade de estimular e de cultivar entre as πόλεις a amizade e a troca, em nível de intercâmbio comercial de bens excedentes. Na proposta de Platão, o que haveria de sempre imperar era a sensatez e a razoabilidade: ideias que todas as πόλεις deveriam almejar e requerer emolduradas na mente de seus cidadãos. Bem por isso que caberia ao Estado prover e financiar os mestres da μουσική: porque, como Platão fez constar na República, os ensinamentos da γυμναστική (da prática dos exercícios físicos, dos princípios da boa alimentação e da preservação da saúde) e os da μουσική (das disciplinas atinentes à escolaridade básica) são como duas irmãs siamesas inseparáveis (III. 404 b): uma não exclui a outra, ao contrário, se carecem, e, além disso, se equilibram feito, como ele diz, “a brutalidade e a doçura” (III. 410 d-e).
Era função do que os gregos denominavam de μουσική, promover a saúde e a sabedoria da alma (do âmbito da vontade e da razão, dos sentimentos e das emoções); da γυμναστική, estimular a saúde (que implicava em conhecimento) e o vigor do corpo18. Ambas se constituíam em artes essencialmente cívicas mediante as quais do cidadão, desde a infância e em todas as idades, se requeria, sob equilibrada medida, a boa disposição corporal e o bom ânimo da mente. Foi assim, aliás, sob os ideais da καλλίπολις (República II. 376 e – 377 a), que Platão concebeu a ginástica como um complemento às disciplinas da μουσική, ou seja, da escolaridade básica, dentro da qual a música propriamente dita ocupava um lugar especial: tinha por função promover “tensão e relaxamento conforme as circunstâncias” (III. 411 e – 412 a). Duas outras disciplinas da μουσική, dentro do projeto platônico, como consta na República (VIII. 548 b-c), passariam a ser fundamentais: o aprendizado da conversação, no sentido de saber produzir um discurso (λόγων) mediante o manuseio eficiente dos símbolos da linguagem, e o da filosofia, no sentido de se apropriar, imersa na conversação, da capacidade de produzir opiniões ou explicações mediante argumentos racionalmente fundamentados.
As artes da ginástica, ao contrário do que ocorria no tempo de Platão, seriam ministradas, dentro do projeto da καλλίπολις como um “complemento” às da música, por pelo menos duas razões: primeiro, porque a severidade dos conhecimentos que promovem a saúde e a sabedoria na alma humana eram (e são) bem mais desencorajadores que os da ginástica (República VII. 535 b); segundo, em razão de que, do ponto de vista do projeto educador platônico, dentro, porém, do contexto das Leis (V. 292 a), a educação decorrente das disciplinas ditas da μουσική, ou seja, das “musas”, que compreendia a gramática, a sinonímia, a dialética (entendida como técnica de investigação discursiva, ou, simplesmente de conversação) e a retórica, haveriam de anteceder (mesmo que unidas) às da γυμναστική. Seriam, pois, disciplinas complementares, com o que o projeto platônico tendia a dissolver o excesso de estima que, naquela ocasião, os jovens e os cidadãos em geral cultivaram pela ginástica em detrimento do estudo das disciplinas da μουσική.
Platão, na καλλίπολις, ao mesmo tempo em que põe em evidência os usos e costumes tradicionais, quer ser inovador: fazer com que, mesclado ao antigo, viesse, sem preconceito, renascer o novo. Nos edifícios por ele idealmente concebidos “para o funcionamento dos ginásios e das escolas coletivas” haveria espaço para todos: para ambos os sexos, meninos e meninas, homens e mulheres, desde à infância à velhice (Leis VI. 764 c-d). Ocorre, todos sabemos, que a ginástica quanto aos seus resultados em favor do vigor do corpo são imediatos, no máximo a médio prazo, não, a rigor, a longo prazo, visto que se esvaem, forçando o ginasta a recomeçar sempre de novo. Os resultados a longo prazo da ginástica são apenas os de uma ginástica mal feita, prejudicial, que perduram, inclusive, muito tempo; já os de uma ginástica bem feita requerem continuidade exercícios moderados, suaves, desde a infância à velhice. Assim, pois, foi o que propôs Platão na República (V. 452 a-b) requerendo, inclusive, que também as mulheres, despidas (γυμνὰς τὰς γυναῖκας), se exercitassem na companhia dos homens. Mulheres e homens de todas as idades, incluindo as jovens e os jovens, os velhos e as velhas, que, como ele diz, “apesar das rugas e do aspecto pouco agradável de ver”, deveriam se dispor como qualquer um a praticar e a amar o exercício da ginástica (φιλογυμναστῶσιν)19.
Aqui entra a seguinte questão: se a nudez dos homens escandalizou os moralistas latinos, imagina se a tal proposição da καλλίπολις tivesse se efetivado: homens e mulheres, de todas as idades, se exercitando juntos, e nus, em um único ambiente! O próprio Platão, na República, assinala que a sua proposta resultaria “em um espetáculo engraçado (γελοῖον = risível, ridículo)” segundo os parâmetros cívico da Atenas de seu tempo (V. 452 b 4-5). Isócrates (436-338 a.C.), contemporâneo de Platão, confirma a sua preocupação: “Hoje, entre nós (sentenciou), são tidos como de inteligência bem dotada, os que se fazem hábeis no manejo do escárnio e do sarcasmo” (Discurso aeropagítico 49). Sem dúvida era um hábito comum; mas Platão não parece preocupar-se: “não devemos temer os gracejos dos espirituosos”. Ele se mostra ciente de que, apesar dos galhofeiros era necessário ousar e buscar a inovação relativa à participação, sobretudo, das mulheres “referente à ginástica e à música – περὶ τὰ γυμνάσια καὶ περὶ μουσικήν”, e, inclusive, no manejo das armas e na equitação; lembremos, acrescenta, “que até bem pouco tempo, os helenos consideravam desonroso e ridículo o espetáculo do homem nu, como, aliás, ainda hoje é o caso da maioria dos bárbaros” (República V. 452 b-d).
O fato é que do ponto de vista da legislatura (πολιτεία) platônica, a nudez humana era reconhecida como absolutamente natural, e a nudez, por si só, não promovia ou abria espaço para qualquer autorização ou permissividade. Vestidos ou nus os membros da comunidade da καλλίπολις haveriam de humanamente se resguardar sob pressupostos do que é bom, belo e justo, em síntese, do que é divino (sinônimo do que é excelente) e, em vista dele, portar-se sob padrões de qualificação ou de humana virtude. O principal da exposição da nudez dos mais velhos recaía sobre um fundamento educador: levar a todos, em particular os jovens, a visualizar e a se familiarizar com o retrato da senda inevitável dentro da qual a beleza de sua nudez juvenil necessariamente viria a se consumir e a se realizar. Vendo na exposição da velhice a representação do próprio futuro, ou seja, deparando-se hoje com um retrato aproximado do amanhã vivido, os jovens, por certo, se acautelariam na vaidade e na arrogância; e, ademais, veriam que é na velhice que se encontra a realização (o τέλος) da vida humana. Afinal, só não envelhece ou fica velho quem morre antes da realização plena do ciclo vida.
Não só quanto às proposições referentes à ginástica e à inclusão dos idosos, mas também quanto à καλλίπολις como um todo, Platão via nos sátiros uma iminente possibilidade de transformar o novo em chacota e riso. Os sátiros e os comediógrafos, feitos serviçais conservadores do estabelecido (é o que se lamenta Platão), satirizavam e faziam os cidadãos rir do novo como se fosse um desvio de padrão, a ponto, enfim, de transformar o riso (por si só uma fonte de humana edificação) em um instrumento perverso contra a civilidade. O perverso é que tais poetas findavam por conceber a “realidade” grega submetendo-a à chacota, com um objetivo essencialmente político: conceber e reinventar os desvios da vida cívica, como, por exemplo, a corrupção na política, o machismo, a homofobia e tantos outros crimes, de uma forma engraçada. O “trágico”, que não deixava de ser uma estratégia política cruel, se dava na medida em que todos esses crimes, submetidos à galhofa, roubavam (como efetivamente roubam) da realidade, mesmo que malvada e pervensa, a necessidade de não levar tais crimes a sério; dito de outro modo: a comédia findava por favorecer, sob a conotação do engraçado e do hilário, o trânsito do desvio e do malfeito sem a necessária criminalização.
Pelo que consta no mesmo Platão, não se tratava de um fenômeno estritamente atual: “quando os cretenses, por primeiro, e, depois, os espartanos introduziram a prática dos exercícios nus (τῶν γυμνασίων) também os comediantes da época zombaram da inovação” (República V. 452 c-d). O fenômeno era antigo. Entretanto, não era a comédia em si, tampouco a poesia e os poetas, que Platão tendeu a desqualificar. Em vista disso, cabe dizer que, o que habitualmente se diz no sentido de que Platão “excluiu” ou “baniu” de sua República a poesia e os poetas, além de não fazer sentido, contém uma lamentável desinformação. A proposição segundo a qual ele “expulsou os poetas da República” é inconveniente, uma simplificação preguiçosa que não corresponde ao teor da crítica e da ideação filosófica de sua doutrina. A esse respeito qualquer análise carece de levar em conta, por exemplo, o que ele sentenciou no Lísis (214 a): “Os poetas são, para nós, os pais e os guias da sabedoria”. Outro fator ainda diz respeito à liberdade da palavra, e, com ela, a franqueza (a παρρησία20), que, para os filósofos, se constituíam na virtude mais bela e valiosa que o Estado, no confronto dos que se entregam à sabedoria, deveria garantir e levá-los a cultivar.
Cabe aqui, neste ponto, apenas uma breve observação: a liberdade, nos termos da παρρησία a que Platão se refere não atinge diretamente o pensar. Ocorre que o pensar humano, quieto (silencioso) em si mesmo, é absolutamente livre. A dificuldade se põe na expressão do pensar, na medida em que ele se estende pelo discurso e atinge diretamente os demais, e, consequentemente, o todo da comunidade estabelecida. Não é, pois, a liberdade de pensar, enquanto exercício da von-tade para si, que faz nascer o uso livre da palavra, e sim o da παρρησία, ou seja, da disposição interna, em termos de franqueza, que se caracteriza por uma capacidade (feito uma virtude) que consiste em se dar a liberdade de dizer o que pensa sob o signo do que é verdadeiro, bom e justo. De um ponto retirado de Platão21 a mais extraordinária liberdade que um homem pode ter ou cultivar é aquela mediante a qual vem a ser capaz de se dar, sob princípios de bondade e de justiça, um bem para si mesmo e para os demais. O dar-se o mal para si, e, consequentemente, para os outros, não se constitui para Platão em liberdade, tampouco em franqueza, e sim em um transtorno; não se constitui do mesmo modo em educação, em uma mente educada, e sim na falta ou carência dela.
4.- Resta, enfim, a título de conclusão considerar que a educação entre os gregos se impôs com uma efetiva obrigação do Estado. Licurgo, com sua legislatura, promoveu dois feitos que se estenderam por toda a Grécia: a) o ordenamento cívico das πόλεις mediante leis que garantissem a liberdade e a justiça para todos; b) a educação da infância, como pressuposto indispensável de qualificação humana e de melhoria cívica dos futuros cidadãos. Platão, no Banquete [209 d], diálogo no qual louva o amor, louvou Licurgo como aquele que promoveu “a salvação (σωτηρία) de Esparta, e, quase direi, de toda a Grécia”; na Carta VIII, teceu-lhe este valioso elogio: o de “homem sábio e bom – σοφὸς ἀνὴρ καὶ ἀγαθóς” (354 b). Assim o fez porque viu no projeto educador de Licurgo uma preocupação que não se restringiu apenas à escolaridade, mas se estendeu à civilidade: ao ἔθος cívico cujo comportamento deveria se pautar por parâmetros conviviais de amabilidade, de gentileza, de cortesia, e, sobretudo, de cuidados recíprocos.
Consta, em Plutarco, Vidas Paralelas, que Licurgo, formulou um regime de leis constitutivas de um ordenamento cívico bem rigoroso para os espartanos. A educação ele a concebera, segundo relato de Plutarco, como “a obra mais importante e preciosa” de sua legislatura, e que, em vista dela, se ocupou de “regular os matrimônios e os nascimentos” (XXI. 14. 1-2). Na carência de professores, Licurgo elevou os anciãos (πρεσβύτεροι) publicamente reconhecidos como veneráveis por sua sabedoria e virtude, à condição de διδάσκαλοι (de professores e instrutores) da infância. Aos tais anciãos, em relação ao παιδός, lhes deu, num só tempo, a obrigação de exercerem “a paternidade, a mestria e a governança (πατέρες (...) καὶ παιδαγωγοὶ καὶ ἄρχοντες)” (XXVII. 17. 1). Foi a partir deles que Licurgo cunhou o nome de διδάσκαλος, cujo sentido literal se expandiu igualmente por toda a Grécia e nomeou em todos os tempos a função do professor, nestes termos: como aquele que, com arte, equipa, adorna e exercita o παιδός na capacitação dos instrumentos do dizer e do pensar, na apropriação dos ditames da vida cívica (da Politeía) e na boa vontade de se apropriar das sementes civilizatórias plantadas e cultivadas de geração em geração. Desde os primórdios, portanto, lá em Esparta, um Estado que persegue, acua e desqualifica os seus διδάσκαλοι, é constituído de bárbaros: de tiranos que têm por caraterística fundamental a insensatez e a ignorância.
A legislatura de Licurgo depende da de Minos, do legislador de Creta22. Mas, eis aqui a sequência das mais salientes legislaturas e dos legisladores gregos: Foroneu em Argos, Mino sem Creta, Licurgo em Esparta; em Atenas tivemos vários legisladores: primeiro Teseu, depois Drácon (cuja legislatura foi promulgada por volta de 621 antes de Cristo23), depois Sólon (638-558 a.C)24, depois Clístenes (565-492 a.C.), e, enfim, Péricles (495-429 a.C.)25. Foi Clístenes, a partir de Sólon, quem solidificou as bases sobre as quais se assentou a democracia de Péricles com o qual Sócrates (469-399 a.C.) partilhou contemporaneidade. Mesmo que Platão não fosse um político de profissão, ele de modo algum cabe ser visto como apenas um filósofo, e sim, enquanto filósofo, como um personagem político, feito uma espécie de legislador. Ele era descendente de uma família de políticos e de poetas:

 

Platão de Atenas era filho de Áriston. Sua mãe Perictione ou Potone descendia de Sólon através de Dropides, irmão do legislador e pai de Crítias, que teve por filho Cáliscros e Gláucon; de Cálistros, nasceu Crítias que pertenceu ao grupo dos trinta, e, de Gláucon, nasceram Cármides e Perictione, a mãe de Platão (...) (Diógenes Laércio, Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres III. 1).

Platão registrou na Carta VII, que, enquanto adolescente, sonhava, na vida adulta, “ingressar na política” (324 c). Mas não o fez, optou pela filosofia. Não porque desprezasse a possibilidade da eficiência da ação, e sim porque naquele momento, como ele próprio reconhece, o púlpito do filósofo garantia bem mais resultados que o do político:

 

Findei por me convencer que as cidades de nosso tempo são mal governadas... Por isso fui levado a fazer o elogio da verdadeira filosofia, convencido de que somente ela pode traçar os limites do justo e do injusto quer na vida política quer na dos particulares (τῶν ἰδιωτῶν). Estou certo de que os males não cessarão para o gênero humano antes que a verdadeira filosofia e os verdadeiros filósofos alcancem o poder, ou que, por algum favor dos deuses, os governantes venham a filosofar (Carta VII. 324 b-d).Acreditar (acrescentou) que basta estabelecer leis, sejam quais forem, para que haja um bom governo, sem dispor de um κύριος que cotidianamente zele pelo regime de vida e que promova a sensatez (σώφρων) e a humanidade (ἀνδρική) dos serviçais e dos homens livres, é um engano manifesto (Carta XI. 359 a).

Toda a reflexão filosófica de Platão findou por se assentar na crença e no fomento, a par de um bom regime e de um bom governo das leis, da possibilidade do humano continuamente promover a ἀνακαίνωσις: a renovação, de geração em geração, da vida humana. Foi, pois, pressupondo essa regeneração que ele se voltou para o que, desde Creta e Esparta, caracterizou todo o desenvolvimento histórico da cultura e que, enfim, deu identidade política aos gregos: o consuetudinário (νόμιμος), o estatuto jurídico νόμος) e a παιδεία. Esses três aspectos entraram igualmente a se conjugar no projeto educador concebido por Platão, projeto que, entretanto, não se restringiu a uma πολιτεία, pois se estendeu a uma πaιdεία. Quer dizer: Platão ao se ocupar com a educação do παιδός como forma de regenerar as novas gerações, e, com ela, a πόλις, assim procedeu ao modo de um Licurgo, ou seja, ocupando-se em idear (construir) um projeto de πόλις ao mesmo tempo em que ideava (construía) um projeto educador, e, com ambos, um novo ἔθος e uma nova civilidade.
No desmonte de um Estado se dá o contrário: ele se faz necessariamente acompanhar da destruição ou desmonte de um projeto educador. Só um governante insano é capaz de uma tal loucura, que, por sua índole pressupõe fechar-se defronte à prosperidade do saber e da qualificação humana. Só uma sociedade “doente” extraordinariamente massificada e alheia aos destinos de si mesma é capaz de permitir uma tão insolente loucura. Parar no tempo da qualificação humana quer para um indivíduo quer para um povo, significa se descuidar do oneroso empenho em busca do melhor (do βέλτιστος, superlativo de ἀγαθός) com o que se promove um “espetáculo de loucura, e até mesmo da maldade” (V. 452 e 1). Assegura neste mesmo contexto Platão, que, de todos os males, o pior se impõe a um indivíduo e a um povo quanto finda por se empenhar em alcançar o belo, o bom e o justo por qualquer outro meio que não seja a senda do bem. Trata-se, ademais, de um empenho supérfluo, em razão de que o bem em si mesmo não se constitui, a rigor, em fim da ação, mas em meio, ou seja, coincide com o próprio caminho da qualificação humana26.
Quer dizer: qualificar-se humanamente não significa estritamente chegar a algum lugar, e sim continuamente percorrer a difícil (Fédon 108 a) senda do bem para nós humanos sempre desafiadora e misteriosa. Daí que foi pressupondo uma “φρόνησις do bem” (República VI. 505 c 2) que Platão arquitetou o principal da atividade educadora que consiste na habilitação humana do uso eficiente da razão (da ação do pensar). Refere-se a um uso que, com muito custo, desde a infância, homens e mulheres são estimulados a lentamente abrir os olhos (da inteligência) em vista de ideais de bondade e de justiça. O custo ainda se amplia na medida em que, de geração em geração, no tombar do velho e no renascer do novo, tudo parece que se apresenta como carente de mais uma vez se reiniciar, sem, entretanto, ter qualquer garantia e certeza de que, desta vez, vai melhorar.
O lamentável é que a ideação da legislatura (πολιτεία) e do projeto educador de Platão findaram sem alcançar a prática, o teste da ação, de modo que apenas serviu de fonte ou instrumento inspirador para a posteridade. Mas, não nos iludamos, admitindo que Platão ingenuamente acreditasse na efetivação cívica de seus ideais grandiloquentes. Se realmente acreditasse não teria dito o que disse no final do livro IX da República (592 a11): que a “cidade que acabamos de fundar” só existe na forma de um discurso (ἐν λόγοις, em palavras). Daí que, metodológica e reflexivamente, ele trabalhou a sua πολιτεία sob dois focos: o da realidade e o da idealidade! Em vista desse consórcio Platão se mostra, entretanto, ciente da necessidade de que é preciso, mediante princípios de idealidade, fertilizar a realidade, sem, porém, subjugá-la, e isso quer dizer apenas fecundá-la mediante ideais concernentes ao que é razoável e ao que é sensato.
Sendo assim, na medida em que ele reconheceu que a καλλίπολις de sua πολιτεία só teria existência no pensamento ou em palavras, não se mostrou assim tão confiante de que a proposta inovadora da cidade bela (na qual haveria de imperar o que é bom, o que é belo e justo) fosse fácil e prontamente acolhida pelo ἔθος regimental da cultura. O que efetivamente ele manifestou (República V. 452 d-e) foi a esperança de que, no decurso do tempo, ocorreria em Atenas o mesmo que se deu entre os cretenses e os lacedemônios: lá, no passar do tempo e com a prática, a experiência mostrou a todos que o ridículo não estava no novo, e sim nos olhos quer dos incultos manipuláveis quer dos defensores inamovíveis do estabelecido e do “interesse dos mais fortes” (República I. 336 b). Bem por isso a extraordinária importância que ele deu à πόλις no sentido de tomar para si, sob o pressuposto da παρρησία, a responsabilidade quanto ao sustento da arte didascálica da educação quer perante as crianças e os jovens quer fortalecendo os mestres e os instrutores. Ele assim a concebeu nos termos de uma obrigação que encontra na promoção do luzeiro da inteligência humana, e dentro do ambiente ou recinto escolar, o seu lugar de realização: ambiente no qual vem a ser possível abrir, perante as gerações, novos horizontes de compreensão e de entendimento, e, consequentemente, novas frestas de renovação em vista do melhor.

Notas

* Graduado em Filosofia e Estudos Sociais com História. Mestrado e doutorado em Filosofia pela Universidade Santo Tomás, Roma, Itália. Professor colaborador aposentado em la Universidade Federal de Santa Maria, en Brasil. Es autor de Filósofos Pré-Socráticos. Primeiros Mestres da Filosofia e da Ciência Grega, Porto Alegre, 3ª ed., 2012; Helenização e Recriação de Sentidos. A Filosofia na época da expansão do Cristianismo, séculos II, III e IV, 2ª edição revisada e ampliada, Caxias do Sul, 2015; Herança Grega dos Filósofos Medievais, São Paulo, 2013; Questões Fundamentais da Filosofia Grega, São Paulo, 2006; Bacon, Galileu e Descartes: o renascimento da filosofia grega, São Paulo, 2013; Os Caminhos de Epicuro, São Paulo, 2009; O Nascimento da Filosofia Grega e sua transição ao medievo, Caxias do Sul, 2010; Epicuro e as bases do epicurismo, São Paulo, 2013; Ética e Política: a edificação do éthos cívico da paideia grega, São Paulo, 2017. [Caixa Postal 5032, (97105-970) Santa Maria, Rio Grande do Sul, Brasil] [migspinelli@yahoo.com.br]

1 Por vezes o que colocamos entre parênteses vem como possibilidade de uma outra tradução. Quando não citamos explicitamente um tradutor, significa que a tradução é de nossa responsabilidade.

2 O amor é a salvação no desamparo: é conforto, luz e esperança no abandono.

3 Significado que remonta a Homero, Odisseia VI. 136: “γυμνός περ ἐών = embora estivesse nu”; XI. 607: “γυμνὸν τόξον ἔχων = tendo o arco desarmado”.

4 Veja a referência platônica: “ἐν ταῖς παλαίστραις γυμναζομένας = lutarem nuas (ou exercitarema a ginástica) nas palestras” (República V. 452 a10).

5 Remetemos o leitor à Spinelli (2016a: 603-643; 2016b: 32-58).

6 Cfr. Phillips & Pritchard (2003).

7 Dedicamos a esse respeito um artigo “O eleuthéros da Grécia: o despertar da liberdade” (2018: 1-11).

8 Cfr. Górgias 463 b; 464 d – 465 e; 500 e; 517 d-e; 518 b-c; 521e – 522 a.

9 Cfr. Aristóteles, Política VII. 16. 1335 a 36- 41 – 1335 b 1-12 – tradução de António Campelo Amaral e Carlos de Carvalho Gomes (1998).

10 Cfr. Górgias 464 a-b; 465 c; 504 a; Samama (2003).

11 Cfr. República III. 410 b; Clítofon 408 e – 409 b; Sofista 227 a, 229 a.

12 Respectivamente: Protágoras 326 b: traduzidos de “εὐρυθμίας τε καὶ εὐαρμοστίας”; República IV. 442 a2: “ἁρμονίᾳ τε καὶ ῥυθμῷ”; VII. 522 a4-6: “ἁρμονίαν εὐαρμοστίαν (...) ῥυθμὸν εὐρυθμίαν”.

13 Cfr. Xenofonte, Constituição espartana V. 8-9; Górgias 452 b.

14 Cfr. Diels & Kranz, Crítias B 32; Clemente de Alexandria, Stromateîs VI. 9.

15 “(...) quam contrectationes et amores soluti et liberi!”.

16 Cfr. Aristóteles, Política VII (ou IV) 15, 1334 a 23. Os latinos derivaram do termo σχολή o que denominamos de escola: um lugar reservado para o repouso e o sossego em favor da concentração da mente em vista do estudo. Era o tempo livre e/ou o ócio (a σχολή) que também definia a condição do ἐλεύθερος da πόλις. Como escrevemos em outro lugar, no Ética e Política: a edificação do éthos cívico da paideia grega (2017: 159), o mais livre, em termos superlativos, não era exatamente quem tinha que se debater na lide cotidiana das ocupações ou dos ofícios, e sim aquele que estava em condições de se ocupar consigo mesmo e, inclusive, com a administração da πόλις ao modo de quem administrava os próprios bens!

17 Cfr. Plutarco, Vidas paralelas. Licurgo XXI. 14. 1-2; 15. 14; XXIV. 16. 7; Platão, Leis I. 625 c.

18 Cfr. República III. 403 c-d; III. 410 b-c; Timeu. 18 a; 88 b – 89 a; Clítofon. 407 c. O conceito de “ginásio” substantivou de tal modo a saúde e o bem-estar a ponto de vir a ser sinônimo de o lugar ou o recinto da saúde e do bem-estar. Clemente de Alexandria, por exemplo, refere-se ao conceito de “cama firme” como “o ginásio natural do sono” (Pedagogo II. 9).

19 O entre aspas pertence à tradução de Carlos Alberto Nunes; cfr. também República V. 458 c-d

20 Esta mescla entre liberdade de dizer e franqueza é característica em Platão: indica a liberdade movida pelo desejo de dizer verdade (República VIII. 557 b; VIII. 567 b).

21 Cfr. República VIII. 557 b; 567 b; Banquete 240 e; Cármides 156 a; Carta XIII. 362 c.

22 Cfr. Tucídides, História da guerra do peloponeso I. 4; Heródoto, História III. 122.

23 Cfr. Aristóteles, Constituição de Atenas: sobre Drácon, Cap. IV; Sólon, Caps. V-XIII; Clístenes, Caps. XX-XXII.

24 “Segundo Sosícrates, Sólon estava em seu apogeu por volta da 46ª Olimpíada, quando, no terceiro ano (por volta de 549 a.C.), ele veio a ser arconte em Atenas, e nessa época elaborou as suas leis. Ele morreu em Chipre aos oitenta anos de idade” (Diógenes Laércio, Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres I. 2. 62 – o entre parênteses foi acrescentado).

25 Cfr. Cícero, República II. 2.

26 Tema que desenvolvemos no Ética e Política: a edificação do éthos cívico da paideia grega (2017: 95ss.).

 

Ediciones y traducciones

1. Amaral de Almeida Prado, A.-L. (trad.) (1999). Tucídides. História da Guerra do Peloponeso. Livro I. São Paulo: Martins Fontes.

2. Bréguet, E. (trad.) (1981). Cicéron. La République. Livre I. Paris: Les Belles Lettres.

3. Brisson, L, (1997). Platon. Lettres. Paris: Flammarion.

4. Campelo Amaral, A. e De Carvalho Gomes, C. (trads.) (1998). Aristóteles. Política. Lisboa: Veja.

5. Caster, M. (trad.) (2006). Clément d’Alexandrie. Les Stromates. Paris: Cerf. Disponible en: [http://remacle.org/bloodwolf/eglise/clementalexandrie/table.htm].

6. Cousin, V. (trad.) (1846). Platon. Clitophon. Paris: Rey et Gravier Disponible en: [http://remacle.org/bloodwolf/philosophes/platon/cousin/clitophongrec.htm].

7. Da Gama Kury, M. (trad.) (1987). Tucídides. História da Guerra do Peloponeso. Tradução de, Brasília: UnB.

8. Des Places, É. (trad.) (1992). Platon. Lois. Paris: Les Belles Lettres.

9. Diels, H. & Kranz, W. (1989). Die Fragmente der Vorsokratiker. Zürich-Hildesheim: Weidmann.

10. Duke, E. A., Hicken, W. F., Nicoll, W. S. M., Robinson, D. B., y Strachan, J. C. G. (eds). (1995). Platonis Opera, vol. 1. Tetralogiae I–II. Oxford University Press.

11. Flacelière, R., Chambry, É. & Juneaux, M. (trads.) (2003). Plutarco. Vies. Tome I. Thésée-Romulus. Lycurgue- Numa. Paris: Les Belles Lettres.

12. Fowler, H. N. (1921). Plato. Theaetetus. Sophist. Cambridge, MA: Loeb Classical Library, Harvard University Press.

13. Fowler, H. N. (1926). Plato. Cratylus. Parmenides. Greater Hippias. Lesser Hippias. Cambridge, MA: Loeb Classical Library, Harvard University Press.

14. Lamb, W. R. M. (1924). Plato. Laches. Protagoras. Meno. Euthydemus. Cambridge, MA: Loeb Classical Library, Harvard University Press.

15. Lamb, W. R. M. (1925). Plato. Lysis. Symposium. Gorgias. Cambridge, MA: Loeb Classical Library, Harvard University Press.

16. Mondésert, C. (trad.) & Marrou, H.-I. (notas) (1965). Clément d’Alexandrie. Le Pédagogue. Paris: Cerf.

17. Nunes, C. A. (1975). Platão. Cartas. Pará: Universidade Federal do Pará.

18. Nunes, C. A. (1988). Platão. República. Pará: Universidade Federal do Pará.

19. Rico Gómez, M. (1989). Xenofonte. La República de los Lacedemonios. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales.

20. Rivaud, A. (1985). Platon. Timée. Paris: Les Belles Lettres.

21. Sartori, F. (1997). Platone. Republica. Bari: Laterza.

22. Talbot, E. (trad.) (1859). Xenophón. Gouvernement des Lacédémoniens. Paris: Hachette. Disponible en: [http://remacle.org/bloodwolf/historiens/xenophon/lacedemoniens.htm].

23. Van Daele, H. (trad.) (2009). Aristophane. Comédies. Tome I. Introduction. Les Acharniens. Les Cavaliers. Les Nuées. Paris: Les Belles Lettres.

24. Vieira, T. (trad.) (2011). Homero. Odisseia. São Paulo: Editora 34.

Bibliografía citada

25. Phillips, D. J. & Pritchard, D. (eds.) (2003). Sport and Festival in the Ancient Greek World. Swansea, UK: Classical Press of Wales.

26. Samama, E. (2003). Les médecins dans le monde grec. Sources épigraphiques sur la naissance d’um corps medical. Genève: Droz.

27. Spinelli, M. (2016a). “O ciclo de estudos básicos (egkýklios paideía) da escolaridade grega”. En Revista Educação e Filosofia 30/60; 603-643.

28. Spinelli, M. (2016b). “O conceito grego da egkýklios paideía e sua difusão no período helenístico”. En Hybris: Revista de filosofia 7/1; 32-58.

29. Spinelli, M. (2017). Ética e Política. A edificação do éthos cívico da paideia grega. São Paulo: Loyola.

30. Spinelli, M. (2018). “O eleuthéros da Grécia: o despertar da liberdade”. En Acta Scientiarum. Human and Social Sciences 40/1, UEM/Maringá; 1-11.

Recibido: 23-04-2019
Evaluado: 18-05-2019
Aceptado: 20-05-2019